Por: José Eduardo Nunes – Professor de História – Colégio Ser! – graduado em Ciências Sociais pela Unesp Araraquara e em História pela Uniso Sorocaba.

Nosso “mundo” foi tomado de assalto. Falo isso, pois em poucos meses nosso modo de viver em sociedade sofreu uma radical transformação. Muitos analistas dizem que esta crise de pandemia não é só da moléstia biológica que nos assola, mas também do modo de vida globalizado, da maneira como nos relacionamos com o mundo e com os seres vivos que nele habitam. Certamente nossa forma de viver em sociedade não será mais a mesma muito menos como enxergamos a realidade e vislumbramos o futuro.

Mas o que fazer diante dessa avalanche de incógnitas? Diante de tantas informações e análises, em que e em quem podemos acreditar ou nos referenciar? Estudar a realidade e buscar exemplos do comportamento humano nos tempos idos são fundamentais, principalmente em situações que apresentam algumas semelhanças com o presente problema.

Há poucos dias minha cunhada disse à minha esposa: “Você tem ideia de que estamos fazendo história com essa pandemia?”. Talvez ela não tenha consciência do tamanho da importância dessa frase para um historiador. Duas ideias são fundamentais nessa pergunta. A primeira é a de que nela apresenta-se a noção de certa consciência histórica da importância do evento em questão, e isso é fundamental para nos situarmos como agentes transformadores da realidade; e a segunda é que a história é feita também no presente, não sendo, exclusivamente, uma ciência do passado, na qual se acumulam narrativas de fatos antigos, como se fosse um grande HD de memórias de acontecimentos. Sobretudo, a história serve como ciência de reflexão humana, da qual se extraem intenções, interesses e perspectivas. Assim, a história é feita por todos nós, mas deve ser analisada, investigada e problematizada por métodos científicos definidos, para que seja de fato uma ciência. Está aí a importância do historiador e dos cientistas sociais.  

Com essas premissas fundamentais, convido o leitor a refletir acerca de algumas epidemias que assolaram nosso passado nacional, especialmente sob o recorte regional, ou seja, da cidade de Sorocaba durante o final do século XIX e no início do XX.

Guardadas as devidas particularidades históricas, a fim de não incorrer no grave erro do anacronismo, é possível retirar algumas lições das epidemias vividas em nossa história regional.

As primeiras leituras historiográficas de Sorocaba já apresentavam fatos relevantes acerca de algumas epidemias vividas pelos cidadãos dessa cidade. Nos anos 40 do século XX, Aluísio de Almeida (pseudônimo de Luiz Castanho de Almeida), padre e historiador, foi o primeiro a apresentar uma história da cidade. Muito embora sua análise ainda fosse linear e factual, método histórico superado e apegado aos grandes acontecimentos e heróis, suas obras contribuíram para pesquisas posteriores, inclusive por abordar algumas epidemias ocorridas, além dos primeiros estudos sobre a saúde pública em Sorocaba. Das enfermidades, ele destacou as duas epidemias de febre amarela e usou parcas palavras sobre a gripe espanhola.

Todavia, foi somente nos primeiros anos do século XXI que estudos da história da saúde pública e das epidemias em Sorocaba ganharam relevâncias e profundidade. Para tanto, é necessário apresentar uma breve história de Sorocaba.

Durante o período colonial e imperial brasileiro, Sorocaba ganhou notoriedade por sua economia. No século XVIII ganhou relevância colonial com o comércio de muares, uma feira de comércio de animais, principalmente de transporte. Em 1750 passou a ser um centro oficial de Registro de Animais, de onde o governo colonial extraía impostos sobre o referido comércio. Deste modo, Sorocaba entrava na rota de um proselitismo paulista, o bandeirismo, sendo vista como uma vila “tropeira” de grande trânsito de pessoas e para onde migravam centenas de pessoas em busca de oportunidades, levando Sorocaba a ampliar e diversificar seu comércio. Nas primeiras décadas do século XIX, a vila ganhava uma imagem “progressista” por contribuir para o transporte do café, do qual a economia paulista e nacional passariam a depender e prosperar. Com crescimento comercial, populacional e urbano, em 1842, a vila foi elevada à categoria de cidade.

Aproveitando-se da Guerra Civil norte-americana, país com a maior produção de algodão, em 1860 cresce em Sorocaba a agricultura algodoeira e, na década seguinte, surgem as primeiras fábricas têxteis e a Estrada de Ferro Sorocabana.

O progresso urbano e industrial da cidade atraiu, cada vez mais, migrantes e imigrantes, acarretando uma nova onda de crescimento demográfico. Assim, uma nova mentalidade associada ao progresso e à expansão urbana começa a aparecer nos discursos da burguesia e das autoridades locais, como forma de obter vantagens politicas e econômicas.  A imagem de “Manchester Paulista” (expressão usada pelo superintendente da Estrada de Ferro União Sorocabana e Ituana em visita à Sorocaba em 1905), comparada à grande cidade industrial inglesa, evidencia a preocupação ufanista das elites locais em promover e potencializar esses ideais. Logo a imprensa dominante local propalaria e chancelaria tal título, posto que era representante das mesmas elites.

Com o advento da República em 1889, o progresso e a ciência (princípios positivistas) adquirem status de celebridade, corroborando ainda mais o caminho conduzido pela burguesia sorocabana.

Não obstante, na última década do século XIX, Sorocaba seria assolada por duas epidemias de febre amarela, a primeira em 1897 e a segunda entre 1899 e 1900. O período de medo e incerteza que se seguiu ameaçou a boa reputação de Sorocaba, não somente a econômica, mas também a de “Higienópolis Paulista”, fama esta adquirida pelo clima ameno – “bons ares” e, portanto, segundo a época, ideal para tratamento de doenças, como a tuberculose.

As elites locais, tentado evitar o pessimismo que a notícia poderia causar a seus propósitos econômicos buscaram, por meio da imprensa situacionista e das autoridades locais, desmentir e acobertar as epidemias, classificando-as como “malévolos boatos”.

As epidemias também foram usadas pela nova burguesia sorocabana como forma de “civilizar”, moderniza e sanear o centro urbano, uma vez que muito se falou que a doença fora trazida à região por tropeiros e seus animais, ou seja, fora importada, garantindo assim a fama de cidade salubre. Na verdade, mais uma mentira útil para eliminar a tradição da feira de animais e garantir os interesses das novas elites. A última feira de muar aconteceu em 1897, exatamente no ano da primeira epidemia, no entanto, esse fato não impediu a segunda onda, e ainda mais violenta, de febre amarela, ocorrida dois anos depois.

A partir da segunda epidemia, o sucesso da guerra sanitária seria uma forma de confirmação do progresso, por meio do ideal e da realização de uma cidade higienizada e salubre.

Mas como eliminar o problema da febre amarela sem conhecer suas causas?

Na época, surgiram diversas hipóteses médicas a respeito da forma de transmissão da doença. Até a descoberta da transmissão pelo mosquito Aedes Aegypti em meados do século XX, diversas teorias foram apresentadas. Da transmissão pela água até a disseminação pelo ar e solo, a ciência médica procurava conquistar seu espaço em um mundo ainda bastante apegado às crenças e receitas caseiras “milagrosas”. Nesse sentido, apesar dos debates  na recém fundada Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo (1895), a  dificuldade de se descobrir a causa e a transmissão da febre amarela refletiram diretamente nas medidas sanitárias adotadas pelas autoridades ao longo processo de combate às epidemias. Diante de tantas dificuldades e incertezas, as epidemias aterrorizaram ainda mais a população sorocabana, provocando pânico e fuga de boa parte dos cidadãos para outras cidades.

Além de não surtirem efeitos, as medidas sanitárias adotadas pelas autoridades sanitárias locais e estaduais encontraram resistência da população, uma vez que uma das ações era o isolamento dos enfermos em hospitais improvisados, o que levou muitos sorocabanos a acreditar que os doentes eram abandonados para morrerem.

Ainda no final do século XIX, as pressões sociais (especialmente dos grupos sociais dominantes) ancoradas na divulgação das hipóteses sanitárias a respeito das causas e formas da contaminação da moléstia, levaram o poder público municipal a apresentar um projeto de saneamento básico, de higienização urbana.

De 1900 a 1903 Sorocaba virou um grande canteiro de obras sanitárias.  A construção de uma rede da água e esgoto contou com verbas do governo  estadual e se concentrou nas áreas centrais, local habitado pelos grupos mais abastados. As periferias tiveram que esperar mais algumas décadas e, mesmo assim, contando com um serviço precário.

Muito embora as obras sanitárias apresentassem caráter seletivo, elitista e pouca eficiência na primeira década do século XX, a imprensa situacionista não perdeu tempo em divulgar o grande sucesso geral do empreendimento civilizatório, não poupando palavras dulcificadoras e edificadoras com o intuito  de promover o ideal de cidade moderna e higienizada. O que estava em jogo não era somente o combate a epidemias, mas, principalmente, a concretização do símbolo de “Manchester Paulista”, pelo qual se afastaria a imagem negativa gerada pelas epidemias e garantiria um ambiente salutar para o trabalho e os negócios.

As epidemias de febre amarela afugentaram moradores, fecharam estabelecimentos comercias, prejudicaram a produção industrial, provocaram pânico e muitas mortes, marcando, de maneira indelével, a memória coletiva da cidade.

Passado o problema amarílico, a cidade voltaria a crescer como cidade industrial, reafirmando seu título progressista. Todavia, em meio a essa retomada do otimismo econômico, em 1918, Sorocaba seria invadida por outra severa e brutal epidemia, a gripe espanhola. 

https://www.migalhas.com.br/quentes/323030/ha-102-anos-gripe-espanhola-paralisou-o-brasil

Segundo dados jornalísticos e estudos históricos, a gripe espanhola teria entrado no Brasil em setembro de 1918, pelos portos de Recife, Salvador e Rio de Janeiro. O navio “Demerara” que trouxe marinheiros do serviço postal inglês, trouxe também a moléstia que matou aproximadamente vinte milhões de pessoas em todo o mundo. Em outubro, a cidade de São Paulo e algumas cidades interioranas já sentiam as mazelas dessa nova enfermidade. A “Manchester Paulista” teria que enfrentar mais um grande obstáculo ao seu ideal progressista.

Nas grandes capitais assim como também em cidades do interior com prestígio econômico e político, a gripe espanhola suscitou, mais uma vez, disputas políticas e narrativas falaciosas. Em várias cidades, as autoridades locais e seus respectivos braços publicitários de imprensa teimavam em divulgar a benignidade da gripe escondendo, muitas vezes, o real número de óbitos. Por outro lado, havia também forças de oposição, buscando, igualmente, ganhar espaço político, usando seus jornais para atacar o governo e desmascarar os discursos otimistas e escapista.

Com o crescimento vertiginoso das mortes, o discurso escapista das autoridades foi substituído pelos debates médicos-científicos e civis acerca das causas e formas de transmissão do flagelo. Sem um consenso médico-científico sobre a questão, somado ao pânico gerado pelo crescimento dos óbitos, a medicina popular e o charlatanismo conquistaram espaço e adeptos. Algumas receitas caseiras chegaram até a serem industrializadas.

Em Sorocaba, o pouco que se sabe sobre a epidemia provém da imprensa local, posto que seja inauditos os estudos e análises historiográficas específicas sobre o assunto. Assim, como nas imprensas dominantes, nas principais capitais do país, até o final de outubro, a imprensa ligada às autoridades sorocabanas também atribuía à gripe espanhola um caráter benigno, uma verdadeira “gripezinha”. Mas, no início de novembro, com o aumento das mortes e dos relatórios médicos, muitos órgãos da imprensa local começaram a divulgar dados sobre infectados e as mortes. Segundo alguns desses dados, em 10 de novembro a mortandade chegava de 7 a 8 casos diários, e mais de três mil contaminados.

Com tais números, as autoridades locais procuraram reunir médicos e empresários locais para estabelecer ações conjuntas de contenção e combate à crescente epidemia. A decisão conjunta de suspender por 15 dias os trabalhos nas fábricas para evitar o crescimento da epidemia causou grande polêmica e conflito. O coproprietário da fábrica Santa Rosália não aceitou a decisão conjunta e aparentemente manteve a fábrica aberta. A partir de então, jornais passaram a noticiar um crescente número de óbitos na vila industrial Santa Rosália.

Habitada na época por aproximadamente 39.000 pessoas, segundo os dados oficiais, Sorocaba apresentou 8.213 casos da gripe e 142 mortes.

Se devemos aprender com as experiências humanas e usá-las como linha condutora de nossas ações no presente e no futuro, com essa breve exposição sobre a história de Sorocaba, é que é possível compreender como as autoridades locais e regionais, a imprensa local, assim como a população sorocabana atuaram e reagiram diante das epidemias. Trazendo para a nossa realidade mundial e nacional, fica fácil traçar alguns paralelos com a situação atual da pandemia do novo Coronavírus. As disputas de poder, os interesses e ideologias políticas e econômicas envolvidas, o controle e manipulação das informações e até mesmo a tensão entre o saber científico e a crença popular são também questões que se avolumam no cenário atual.

Na obra “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, o autor destaca: “Hegel observa que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.

Mantenha os olhos sempre bem abertos, o coração o mais próximo da humanidade e a mente sempre atenta e lúcida.  

Fontes Básicas:

ALMEIDA, Aluísio de. Ciclo do Tropeirismo, 1734-1897, na primeira fase, até 1822. Subciclos da pecuária e algodão.

BADDINI, Cássia.Passagem de tropas e comércio de animais: os usos da cidade e o ordenamento do espaço urbano.

DALL’AVA, João Paulo.Sorocaba entre epidemias: a experiência de Àlvaro Soares na febre amarela e na gripe espanhola (1897-1918).

MOTA, André. Notas sobre o Sanitarismo em Sorocaba na Primeira República.

MOTA, A, BADDINI, CM. Dilemas Revelados e Mitos Desfeitos: Sorocaba e a epidemia de febre amarela na República Velha.

PINTO JUNIOR, Arnaldo. A invenção da Manchester Paulista: embates culturais em Sorocaba (1903-1914).