Por: Daniel Gomes de Carvalho – doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e professor de História Moderna na Universidade de Brasília.
Imaginemos que, por um instante, somos todos transportados para uma discussão entre dois historiadores, no ano de 2050. A discussão é: qual foi a causa da grande crise de 2020?
Um historiador ingênuo, possivelmente norte-americano, confiante e munido de um grande número de gráficos e estatísticas, dirá: – a causa da crise foi, evidentemente, o vírus!
Um historiador brasileiro, contudo, lembrará: se a causa fosse meramente determinada pela biologia, isto é, pelo vírus e sua propagação “natural”, por que a crise foi tão diferente em tantos lugares? Por que determinados países, com condições climáticas não muito diferentes do Brasil, tiveram uma mortalidade tão menor? Nossa sociedade, sabemos bem, é uma sociedade de abundância. Os pães e peixes já foram multiplicados, e o desperdício de alimentos é hoje um grande problema. Se a sobra de comida é um fato incontestável, por que, afinal, alguns meses confinamento são um problema?
Essas perguntas nos levam a uma resposta inequívoca: a causa da crise de 2020 não foi meramente o vírus. Não vivemos – agora voltemos a falar no presente – uma crise causada por uma doença. Vivemos muitas outras crises, ou, como melhor disse o historiador Jérôme Baschet1, vivemos uma crise estrutural permanente, acelerada ou revelada pelo vírus, mas de forma alguma provocada por isso. Vivemos uma crise, a um só tempo, imprevisível, pois a emergência do vírus não poderia ser antecipada, e anunciada, dada que os problemas político-sociais que tornaram a emergência do vírus um enorme desastre.
Nesse sentido, trata-se, antes de tudo, de uma crise político-social. A possibilidade de morrer graças ao coronavírus, como sabemos é pequena se comparada a várias outras doenças. O problema, por conseguinte, reside não na doença, mas na incapacidade de lidar com ela: países europeus, com recursos muito superiores ao Brasil, mostraram assombroso despreparo. Ora, se é fato inconteste que muitas pessoas que viveriam se tivessem um tratamento adequado estão morrendo, a causa das mortes não é exatamente a letalidade do vírus, mas a incapacidade da sociedade que o recebe em lidar com ele. Daqui advém um ponto fundamental de meu argumento: nossa sociedade, ao contrário da sociedade que enfrentou a peste negra no século XIV, tem recursos suficientes para lidar com a doença; mas, mesmo assim, não consegue lidar, devido a um modelo específico de distribuição e gestão que se mostrou insuficiente. Essa é a nossa grande tragédia.
Nesse ínterim, é preciso lembrar que a crise está intimamente ligada a três transformações econômicas, intensificadas em tempos recentes: a expansão desenfreada da exploração agropecuária, que, como sabemos, está ligada várias doenças recentes, como a gripe suína e a gripe aviária H5N1; a urbanização e o desmatamento excessivos, que nos levam ao contato mais íntimos com animais selvagens, os quais podem estar na raiz de várias doenças, como o HIV e do Ebola; 3) a própria globalização dos fluxos econômicos, intensificada desde a década de 1970, que tornou a expansão do vírus rápida e incapaz de ser contida. Em suma, nem a gripe suína, nem grupe aviária, podem ser entendidos como “naturais”; sua expansão têm uma raiz social e econômica profunda.2
Gostaria de lembrar que hoje, no distrito federal, vi fotos de uma estação de metrô em Taguatinga absolutamente lotada. Por que, pensando no outro, os patrões não remanejaram os horários de pico? Semana passada, amigos que trabalham em uma famosa escola privada da cidade de São Paulo, estavam indo gravar vídeo aulas. Nessa mesma escola, pais de alunos se movimentam para retornar as aulas em abril, antes do fim da quarentena. Por que esses pais e essas empresas não pensaram na vida de seus trabalhadores, em risco? Por que parte do empresariado brasileiro, com apoio do Estado, está ávido por jogar os trabalhadores na roleta russa da morte? Não seria, nesse caso, um estado que está gerindo a morte (Achille Mbembe), mas um estado que, em parceria com a nossa burguesia, age como promotor da catástrofe humana, o “estado suicidário” de Paul Virílio.3
Revendedoras, donos de restaurantes e publicitários mostram, com total clareza, uma indiferença brutal e desumana para com a morte. Nós historiadores bem sabemos que isso não é fato novo e inédito na história; o apoio de nossas elites à escravidão e a ditadura cívico-militar está bem documentado. Ocorre que, como pontuado pela grande historiadora Emília Viotti da Costa, momentos de crise são momentos em que verdade, que tornam mais límpidas as verdades que antes poderiam ainda surgir como hipóteses:
“Momentos de crise são momentos de verdade. Elas trazem à luz conflitos que na vida diária permanecem ocultos sobre as regras e rotinas do protocolo social, por trás de gestos que as pessoas fazem automaticamente, sem pensar em seus significados e finalidades. Nesses momentos expõem-se as contradições existentes por trás da retórica e da hegemonia, consenso e harmonia social”4
Seja na sanha da classe média por acumular grandes estoques papel higiênico e manter seus empregados domésticos em casa de qualquer jeito, seja na insensibilidade e desprezo que um vendedor de hambúrgueres mostra em relação a vida dos trabalhadores, momentos de crise são períodos privilegiados para entendermos o funcionamento de nossa sociedade e suas contradições.
Mas a crise, que é social, torna-se também uma crise científico-intelectual ou epistemológica. Por mais que meus desejos conspiracionistas queiram que as vacinas sejam mentirosas, as doenças que decorrem de sua ausência se impõem com brutalidade. Por mais que as criaturas que minha mente fez viver digam que o vírus não tem impacto, mesmo assim, os cadáveres continuam a se multiplicar. Em suma, a realidade sempre resiste aos devaneios que propago em meu celular, e é nessa brecha de resistência que floresce a boa ciência.
Contudo, rapidamente essa crise científico-epistemológica torna-se uma crise política. Todo democrata anseia pela construção de uma “ciência cidadã”5, quero dizer, uma participação maior da sociedade civil nas decisões políticas, mesmo quando elas dizem respeito à saúde ou à economia. A ideia de uma sociedade controlada despoticamente por uma elite de tecnocratas é solução rejeitada por todos defensores de uma sociedade aberta; foram muitos os teóricos, nas últimas décadas, que denunciaram a falsa neutralidade das ciências. Em resumo: no intervalo entre o conspiracionismo e a pedagogia do real, como preservar a democracia?
Sartre define o canalha como aquele que arroga para si a posição de indispensabilidade, como Luís XV, que teria previsto o dilúvio em sua ausência. O dilema ou você trabalha ou você morre é, por conseguinte, um falso dilema. O poder tenta nos dizer que temos apenas duas opções e, assim, restringir as nossas possibilidades de pensamento, enquadrando-nos em um falso dilema. É uma forma de indução, para pensar de maneira sartreana, absolutamente canalha. No entanto, reitero a observação inicial, fundamento último deste texto: não podemos esquecer que o desenvolvimento técnico-científico dos últimos três séculos nos colocou numa posição favorável, na qual não há, definitivamente, falta de alimentos e recursos. Então, por que não é possível ficar em casa, poder proteger a própria vida e ainda sim ter o que comer? Continuaremos a tentar criar um espaço virtual artificial, com uma aparência de normalidade, no qual nada estria acontecendo, ou, pelo contrário, encararemos essas contradições reveladas, a fim de buscar uma outra sociedade possível? Com todo respeito à ciência de Hipócrates, não serão os médicos que nos darão essa resposta.
2 https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Sociedade-e-Cultura/O-direito-universal-a-respiracao/52/47177
4 COSTA, Emília Viotti da. Coroas de glória, lágrimas de sangue: a rebelião dos escravos de Demerara em 1823. São Paulo: Companhia das Letras, 1998
5 https://www.cafehistoria.com.br/um-historiador-da-saude-fala-sobre-novo-coronavirus/